terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Mar e a sede


(Lendo pausadamente a carta até ser interrompido)
Tão leve parti, tão doce voltei. Em sal ardi. Fiquei. Já passam das onze, meus lábios secaram da ausência da tua presença, Antes viva. Tardei de enfeite nos corais das margens claras, Seus Vôos pareciam-me vivos como a maresia das horas calmas. E que havia de tão cristalino na minha face? Enrubescida da calma dos teus olhos, fui desvestindo detalhe por detalhe todos os meus transtornos. Evocastes minhas mãos sinceras, com tudo era tua pele que eu caçava por entre as entranhas desvestidas da noite. Por onde andarás? Frutifiquei de desejos os terrenos mais improváveis e calcei amarguras infindas. Não adiantava fabricar fantasias. Tua alegoria transpunha meus sonhos mais irremediáveis e o que sobra? Meu movimento? Minha ira do tempo, que não me basta, e do espaço, que me sobra sem caber nos “entres”? As Naus que me dilaceram o corpo rompem tuas moradas abjetas mais petulantes. E Eu gosto! Tão leve parti, tão doce voltei. Em sal ardi. Fiquei...

- Eu descobri que ainda tenho sede de ti: Há remédio?
- Tentas, solerte, reinventar as noites e, no entanto, tripudias da minha voz desfeita no vento.
- Noite adentro, nuca aberta...
- Teu sorriso é que desvenda a arte toda. Fluo nas paisagens, mas sabes voar: Beija-flor (raio-de-sol). Amargura é a dor guardada na gaveta. Me deixa tentar?
- Em vão minhas horas tentam ti explicar por onde andei. Não basta! No mais nem te interessa. Ainda lembras quem sou?
-Hora! O Mar! Na turba foram que meus olhos fatigados do caminho pousaram definitivos no dilúvio dos teus: aliás, por que choras?
- É tão notório que me faço entristecido que nem notei que havias notado.
(Plena de interesse) - De certo...
- Ou de certo almejas arriscar qualquer coisa de volátil no meu desejo pelo teu que não tem nome?
- Quando acalmares retorno...
- Não, fica! Esquece, deixa pra lá!
- Acaso esperas que eu faça platéia diante tua tragédia? Em mim a dor habita da mesma maneira...
- Mas não devia! Tens a cura! Sabes da minha sede melhor que eu!
- Quisera eu poder dar de beber a quem me aprouvesse. Simplesmente não vai de mim essa regalia.
- No entanto, não negue que não te apeteça ver minhas ondas te tentando traçar o alcance (com as duas mãos estendidas).
- É de praxe te me fazer chorar?
- Convenhamos que árduo até onde posso, mas se não queima não há solução... Só me deixe tentar.
- Pára de implorar tuas qualidades em pedra até areia tornar... há tantas outras sedes...
- Mas te tenho a ti e nenhuma outra me sacia! Que inglória alterares minhas marés! É de teu feitio te me fazer querer e depois negar.
- Ou por outra, senta aqui (e arreda uma cadeira)... Poderíamos morrer nas prendas, não se precisaria sede alguma, se quer notaríamos o tempo dançando.
- E pra quê? Pra nascerem-me as sedes e me contentar com gotas de delírios? Pra enganar-me por querer por entre os líquidos de outras semânticas que acaso fabricas? Faz-me rir, ou por outra chorar feito um coitado! Não te cabe na arte arquitetura nenhuma que se me pareça concreta ou definitiva. És dádiva alcançada e dada sem apreço pra tantos outros que se quer lhe amputa valor de significação. Brisa, carne moída no tempo, sede líquida na paisagem. O próprio nada!
- Então é pra isso? Pra fazer de qualquer negativa uma acusação que me evocas à mãos simples? De que te vale me ter por perto?
- Me vale de ter certeza que da tua ausência é tudo o que abdico. Fica!
- Agora é tarde!
- Fica, logo passa!
- Trata de reaprender o antes de mim...
- Não me deixa...
- Não me tens...
- Ti suplico!
- Ti delato!
... E assim se foram seguindo até o fim dos tempos: o mar implorando a presença da sede que nunca partia, mas o ameaçara por instinto a quase todo o momento. Ela medo de perder, ele medo de não ter. A vontade era tanta que eles nem notavam que nunca haviam perdido ou não tido nada. Eles tinham tudo. Eternidade de um ao outro sem se ater.

(A luz vai apagando e junto com ela as vozes cessando)

FIM