quarta-feira, 29 de setembro de 2010

29-09-10 - Dia Comum


A chuva deixa a noite mineira ainda mais triste. Depois da décima sexta chegada na última Raia, minha Professora disse: - Relaxa e vai pro chuveiro! Mergulhei o mais fundo que pude e me mantive no fundo o tempo que meus olhos e pulmões agüentaram. Vi os pingos caírem no céu e reverberarem na água da piscina que refletia um tom escuro de azul, imitando a noite. Me senti tão seguro quanto num útero materno, Quente e líquido: - Nada pode me atingir, Pensei e quando pensei já estava do lado de fora sendo abraçado pelo frio daquela noite misteriosamente diferente. Algo deveria estar mudando em mim, ou no mundo do lado de fora daquela piscina.
Na faculdade assisti a um filme da Varda sobre uma fotografia que ela tirara em 1964 em algum lugar da Europa. Era linda! Ainda posso vê-la: Em Pê e Bê um mar enorme, tem um homem e uma criança. Ambos estão nus. O homem olha para o mar e a criança para quem olha a foto, de uma maneira tão amorosa que era como se ele estivesse sentindo a segurança da piscina que sentira minutos antes. Talvez meu olhar estivesse assim. O mais intrigante da fotografia é que no primeiro plano havia uma cabra morta deitada nas pedras da praia, como se tivesse acabado de cair ali. Era o tom triste que faltava na beleza daquela imagem tão lindamente resgatada pela diretora. Tive num obstante uma emoção contida. Lá fora a chuva ainda caía cada vez com mais força, e mais força, e mais força, e mais força... O céu parecia desabar e confesso, naquele momento, eu também!
No carro, meu primo tinha uma discussão decisiva. Eles pareciam terminar enquanto a chuva caia. Dei um ‘boa noite’ sem resposta. A porta do automóvel se fechou e segui calado até minha casa. Ele ritmava ao telefone o quedar da chuva com sua discussão. Era amena, branda e sem eloqüência. Pontuada por relâmpagos, como se o céu parecesse responder ao que ele dizia. Tive medo, depois pesar. As cores das luzes da cidade se desfaziam ante ao vidro embaçado. Imagens coloridas se formavam como numa exposição multicolor. Uma espécie de cinema bizarro que ainda mantinha como trilha o som de um fim ao telefone. Eu ali, um intruso, um expectador da vida real. Invisível, só me fiz notar quando o carro parou no meio fio em frente ao portão de ferro do nosso prédio. Na impossibilidade de falar com ele, escrevi com o dedo no vidro embaçado: “Te espero em casa”, e saltei na chuva rumo ao meu apartamento.
Em casa, ao notar a beleza e a força daquela água que não acabava de cair jamais me despi e fui assim, só de cuecas ao encontro dela na varanda. Enquanto todos se protegiam nas ilhargas das calçadas ou sob as paradas de ônibus eu dançava na chuva em silêncio. E parava sempre que a noite clareava com um relâmpago seguido de um estrondoso trovão, mas não me intimidava. Pensava nessa busca incessante do trovão pelo relâmpago. Desde sempre para sempre. Prometido a nunca alcançá-lo. Sempre um após o outro. Jamais unidos, jamais encontrados, ainda que por uma fração de segundos sempre um frente ao outro, sem nunca se tocarem, sem se quer se conhecerem. A real busca de nunca alcançar, mas ainda assim tentando. Ainda assim seguindo. Ainda assim sendo trovão após relâmpago. A beleza da busca estava mesmo em jamais alcançar. Luz e som: procura sem encontro. A beleza de nunca chegar.
Conversei com Deus. O chamei de Pai e expus minhas lamurias como um filho mimado. Perguntei os motivos de eu estar vivendo tão longe de casa. O propósito de eu não encontrar trabalho, A necessidade que havia de continuar amando sem ser amado. Depois pedi que com aquela chuva Ele me lavasse. Que tirasse de mim todas as impurezas do pecado (porque acredito em pecado). Que essa cena noturna fosse a metáfora exata do propósito do Sangue de Cristo no Calvário. Conversei com Ele em Francês, Inglês em Línguas estranhas e por fim em português. Nesse momento meu primo apareceu por detrás da luza da porta da cozinha com uma toalha e muitas preocupações. Sorri, agradeci, me despedi de Deus e voltei pra dentro de casa, onde estava quente. Meu primo não me contou o desfecho com a noiva, aliás, creio que eles ainda estejam se falando ao telefone, porque ainda vejo os relâmpagos como resposta, da janela do meu quarto... E em meu frágil coração, uma sensação doce de que amanhã tudo pode acontecer, inclusive nada!

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Histórias de Nelson que ouvi atrás da porta n° 2 : FALECIDA


Passou um batom cor-de-boca e desapareceu escada abaixo sem derramar uma mísera lágrima durante todo o trajeto até a sua casa. Epiláfio, em contra-partida deslizou na parede e se encolheu feito um feto no chão da sala: imóvel. Apenas lhe compunha à imagem de pobre diabo as contrações repentinas de dor e amargura que lhe palpitavam como soluços involuntários. Pensou que fosse morrer.
No outro dia a imagem da sala era aterradora. Epiláfio dormira na mesma posição em que caíra. Ao redor dele um cinzeiro repleto, livros e discos espalhados, em meio as roupas sujas de Alaliáscara com as quais dormira abraçado. Acordou assim que o sol se fez presente na janela descortinada do apartamento ordinário da Francisco Sá. Sua boca, uma amargura tão profunda que fora como se todo o fel que encobrira seu coração tivesse sido vomitado na madrugada. Acordou outro.
Na repartição quando lhe perguntavam em que pé andava a situação ele era categórico: Está morta! Utilizara essa frase tão exaustivamente que invariavelmente recebera um “Meus pêsames” como resposta. Nesse contexto sempre agradecia e seguia sua vida adiante. O destino que Epiláfio houvera dado à Alaliáscara fora tão convincente que até mantinha certa nostalgia ao desenterrar suas memórias: - Uma santa mulher! - Suspirava de si para si, como se a tal fulana estivesse, de fato, morta. Era tão fiel à memória da falecida que no dia de finados comprou flores amarelas e levou até o cemitério do Bonfim, decidiu não entrar, sob a desculpa do calor, deixara o ramalhete à porta, fizera o sinal da cruz e voltara para casa.
No dia seguinte foi até o quarto de sua mãe e disparou: - A partir de hoje só me visto de preto compreendeu? - A mãe, pobre coitada, numa velhice contundente, examinou as caixas de remédio para confirmar se tivera esquecido algum. Ao se deparar com sua saúde mental intacta pensou: - Espeto!
Epiláfio passou meses numa viuvez honesta. Na repartição nem se tocava mais no assunto, a fulana era mesmo dada como morta e enterrada, alguns amigos até tentavam animá-lo: – Vambora pro clube Epiláfio. Ainda és muito jovem rapaz, bola pra frente! – Mas ele era irremediável: - Vão vocês, minha vitalidade morreu junto com Alaliáscara. Podem ir – determinava o viúvo. – Pelo menos nos leve até lá então? – pediu Nogueira, na expectativa de que chegando lá o colocassem fora do carro e o ajudassem a esquecer a falecida. – Fechado, uma carona eu dou, mas não descerei do carro ouviram? – E os rapazes piscaram uns para os outros enquanto acenavam positivamente com a cabeça.
Na altura da Afonso Pena o semáforo fechara, a noite fazia calor e os rapazes baixaram os vidros do automóvel enquanto ele ia parando na faixa. De dentro do carro, naquela esquina se pode ver. Era ela, a falecida, mais viva do que nunca, aos beijos com um cavalheiro de porte franzino, bem menor que Epiláfio, mas estavam num furor que pareciam que se alimentavam um do outro pela boca. E ela ria alto enquanto o franzino mancebo lhe beijava as nucas e as maçãs do rosto. Uma pouca vergonha digna de platéia.
No carro foi uma comoção geral, os três colegas de Epiláfio num misto de confusão e indignação começaram a questioná-lo e a mau dizê-la como que tentando compreender aquela cena. Epiláfio foi tragado por um pavor tremendo, os olhos encheram-se de lágrimas e de súbito sem responder às indagações dos rapazes ele pôs o pé tão fundo naquele acelerador em direção ao casal que era como se o carro tivesse sido tomado por um tufão. Ouviu-se um grande grito na avenida seguido de um estrondo indescritível. Epiláfio deu cabo da vida de Alaliáscara.
No hospital, quando o delegado do distrito interpelou Epiláfio, semi-consciente na maca, sobre o que ocorrera, o pobre-diabo só disse uma frase: - Ela já era falecida, Doutor!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Mar e a sede


(Lendo pausadamente a carta até ser interrompido)
Tão leve parti, tão doce voltei. Em sal ardi. Fiquei. Já passam das onze, meus lábios secaram da ausência da tua presença, Antes viva. Tardei de enfeite nos corais das margens claras, Seus Vôos pareciam-me vivos como a maresia das horas calmas. E que havia de tão cristalino na minha face? Enrubescida da calma dos teus olhos, fui desvestindo detalhe por detalhe todos os meus transtornos. Evocastes minhas mãos sinceras, com tudo era tua pele que eu caçava por entre as entranhas desvestidas da noite. Por onde andarás? Frutifiquei de desejos os terrenos mais improváveis e calcei amarguras infindas. Não adiantava fabricar fantasias. Tua alegoria transpunha meus sonhos mais irremediáveis e o que sobra? Meu movimento? Minha ira do tempo, que não me basta, e do espaço, que me sobra sem caber nos “entres”? As Naus que me dilaceram o corpo rompem tuas moradas abjetas mais petulantes. E Eu gosto! Tão leve parti, tão doce voltei. Em sal ardi. Fiquei...

- Eu descobri que ainda tenho sede de ti: Há remédio?
- Tentas, solerte, reinventar as noites e, no entanto, tripudias da minha voz desfeita no vento.
- Noite adentro, nuca aberta...
- Teu sorriso é que desvenda a arte toda. Fluo nas paisagens, mas sabes voar: Beija-flor (raio-de-sol). Amargura é a dor guardada na gaveta. Me deixa tentar?
- Em vão minhas horas tentam ti explicar por onde andei. Não basta! No mais nem te interessa. Ainda lembras quem sou?
-Hora! O Mar! Na turba foram que meus olhos fatigados do caminho pousaram definitivos no dilúvio dos teus: aliás, por que choras?
- É tão notório que me faço entristecido que nem notei que havias notado.
(Plena de interesse) - De certo...
- Ou de certo almejas arriscar qualquer coisa de volátil no meu desejo pelo teu que não tem nome?
- Quando acalmares retorno...
- Não, fica! Esquece, deixa pra lá!
- Acaso esperas que eu faça platéia diante tua tragédia? Em mim a dor habita da mesma maneira...
- Mas não devia! Tens a cura! Sabes da minha sede melhor que eu!
- Quisera eu poder dar de beber a quem me aprouvesse. Simplesmente não vai de mim essa regalia.
- No entanto, não negue que não te apeteça ver minhas ondas te tentando traçar o alcance (com as duas mãos estendidas).
- É de praxe te me fazer chorar?
- Convenhamos que árduo até onde posso, mas se não queima não há solução... Só me deixe tentar.
- Pára de implorar tuas qualidades em pedra até areia tornar... há tantas outras sedes...
- Mas te tenho a ti e nenhuma outra me sacia! Que inglória alterares minhas marés! É de teu feitio te me fazer querer e depois negar.
- Ou por outra, senta aqui (e arreda uma cadeira)... Poderíamos morrer nas prendas, não se precisaria sede alguma, se quer notaríamos o tempo dançando.
- E pra quê? Pra nascerem-me as sedes e me contentar com gotas de delírios? Pra enganar-me por querer por entre os líquidos de outras semânticas que acaso fabricas? Faz-me rir, ou por outra chorar feito um coitado! Não te cabe na arte arquitetura nenhuma que se me pareça concreta ou definitiva. És dádiva alcançada e dada sem apreço pra tantos outros que se quer lhe amputa valor de significação. Brisa, carne moída no tempo, sede líquida na paisagem. O próprio nada!
- Então é pra isso? Pra fazer de qualquer negativa uma acusação que me evocas à mãos simples? De que te vale me ter por perto?
- Me vale de ter certeza que da tua ausência é tudo o que abdico. Fica!
- Agora é tarde!
- Fica, logo passa!
- Trata de reaprender o antes de mim...
- Não me deixa...
- Não me tens...
- Ti suplico!
- Ti delato!
... E assim se foram seguindo até o fim dos tempos: o mar implorando a presença da sede que nunca partia, mas o ameaçara por instinto a quase todo o momento. Ela medo de perder, ele medo de não ter. A vontade era tanta que eles nem notavam que nunca haviam perdido ou não tido nada. Eles tinham tudo. Eternidade de um ao outro sem se ater.

(A luz vai apagando e junto com ela as vozes cessando)

FIM

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Discurso de um aflito


Um passo, pouco mais que nada...
Minha febre havia encontrado a cura, porém minha alma ainda estava repleta de tensões num pesadume que me fazia lembrar um passado adormecido no peito.
Mas eis que, da noite para o dia a tempestade transformara-me em um ser digno da piedade alheia outra vez... Que fizera eu de minhas vontades amputadas pela sede? Ainda estavam lá e eu pensei estar liberto delas... Um passo, pouco mais que nada e minha fronte tornava a sangrar de um desespero derradeiro diante da falha da inquietação num desses desesperos lascivos que tornavam minhas carnes em tremor ritmado anunciando minha queda. O que sobrava de mim?
Mais uma vez encarava a realidade estéril das minhas horas com o impacto de um cego no poste, cria num dia incomum contudo a própria dinâmica do tempo me apontava para o beco deserto a que me fora destinado os passos. Um passo, pouco mais que nada.
Minha tentativa era a de sobreviver à nado na tormenta que se alastrara diante de minhas necessidades mais poerís, estava fraco e faminto das próprias crenças, sem mão nem pedra, julgado diante de olhos virginais à disputa da irremediável sensação de esquecimento por um sopro de vida que nunca se cala.
Um passo, um único passo, Pouco mais...
Que nada!

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Cartas para ninguém I



Caríssima Amiga,
Tenho-te sonhado de noite e de dia e, embora minhas vontades oscilem entre desejo e querer-te bem, minhas horas têm-te faltado na escuta honesta de todas as noites.
Não sei que raio de solidão é essa que nos insiste em compor plena madrugada a fora, contudo, ouso descrevê-la para que possas compreender minhas faltas..
Tardava a madrugar em certa noite quando vi teu canto desfeito na curva do tempo e mediquei os pássaros com sorrisos agrestes para que pudessem voltar a cantar teu nome.
Havia certa paz em mim que tu desconheceras? Quem sabe mera impressão alheia de quem passa e aos acontecimentos das noites brandas que fazia aqui nas Gerais?
Hoje tive outro sonho teu, daqueles bem indizíveis.. Coisa fosca que parecia passado, mas arriscava um futuro, sabe-se lá de quando e onde..
Trazes consigo alguma vontade minha? Quimera desprendida por entre as falhas dos risos da lua?
Aqui faz frio, trata-te de te agasalhar bem, não quero que gripes.. Contudo se gripares, divertir-me-ei ao ouvir teus espirros matutinos no quarto ao lado a me acordar...
Quisera eu poder ter esses espirros a me despertar todas as manhãs para o resto de minha triste vida diante das alegrias da tua!
Não, dulcíssima amiga, não tenho sofrido por pensar em amores. Já reconheço que entre nós a mais profunda amizade é o que sela nossa felicidade e é tudo o que me podes propor. Tenho-me por satisfeito, acredite!
Embora nossos amigos teimem em nos fatigar com tamanhos disparates sobre nossa relação, tudo o que tenho a te oferecer é meu mais sincero carinho, quem sabe à espera de um beijo, quem sabe nem pensando nisso
De fato, como na carta que me mandastes, devo te encher de confusões solertes por, a todo o momento, te mergulhar na dúvida dos meus sentimentos por ti... Não ti preocupes, Te asseguro que ante todas as possibilidades de sentimento te dedico minha amizade como uma canção em flauta doce, ou harpa de Querubim. Tenhas-te por satisfeita também...
Por fim, Doce amiga, mais que amiga, mais que nada... Escorro por entre as linhas dessa paupérrima epístola minhas mais plurais saudades da tua existência ao lado da minha. Conto cada segundo que me afasta da tua chegada à espera de que nosso reencontro se faça na trama viríl de tamanha hospitalidade que te tenho entregue muito antes de chegares.. Não tardas a chegar dulcíssima... Não tardas que meu coração se perde entre a percussão ritmada de não te ter por perto!
Amor,
Teu!

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Winter Blues



A resistência das folhas em esperar o outono me comove.
Tenho observado essa luta diária em se manter no galho ainda que chova, ainda que faça frio, ainda que uma porção de outros aindas apareçam. Me sinto fraco.
Chegou o dia de admitir que não consegui. Que não importa o quanto tenha lutado, estou vencido, que meus ideais de vida programáveis não se sustentavam e haverei de voltar.
Hoje não atendi os telefonemas, se quer olhei para ver quem era... Acordei com o calor irremediável da derrota no colo. (ainda que as folhas persistam).
Tentei camuflar-me entre eles, até pus roupas que me misturavam à maré ilesa, mas meus 'tus' deflagraram a longa viagem a que me submeti para estar aqui.
Nas manhãs observo as centenas de pernas que cruzam minha rua. Apressadas, admitem seus empregos definitivos de carteira assinada e férias remuneradas.
A remela nos meus olhos, que me atrapalham a visão deflagram minha incapacidade de alcançar aquelas pernas. Meu pijama cheira a fracasso e ainda estou vivo, mas desistindo de esperar o outono no galho.
Hoje não abri as cartas, se quer sei quem as me enviou, não chequei centenas de vezes a caixa de e-mail à espera de uma resposta. Estou descrente!
Se quer consigo chorar por isso.
NÃO QUERIA VOLTAR! Não queria admitir para mim mesmo que tenho raízes profundas e que me impedem de seguir a diante. Mas é como se não tivesse partido. Que vitórias me foram entregues? Que medalhas me foram colocadas no peito?
A bravura de ter sobrevivido à distância familiar me enche de tédio! E já não suporto ouvir que sou homem porque sobrevivi à solidão! ESTOU TRISTE... Triste por perceber que não importa o quanto tenha nadado, o mar está me tragando. Não importa o quanto tenha corrido, não saí do quintal.
Vivo um simulacro de liberdade domada pelas cifras de meu pai e me chamo de Homem. Que merda de homem é esse que se quer consegue garantir a si o sustento da folha no galho, pelo menos até que o outono chegue?
Não, o frio não nos causa delírios como o calor. O frio serve de colírio para os nossos olhos, para que vejamos o real indizível, inefável, segredado por nossas amarguras infindas na noite!
Estou triste porque a volta ao início é inevitável e nem se quer consegui semear meus próprios grãos nessa terra que me disse: Fica!

terça-feira, 4 de maio de 2010

Manifesto contra o pesadume da morte


Fazer a longa Viagem! Transpassar o idílico... Por vir, até nunca chegar, mas partir. Isso é sair do eixo até se tornar o outro lado. Ou Simplesmente o Outro. Como um trajeto veloz que me leva tanto à eternidade quanto à parte alguma. Pra onde? Eu me pergunto, e de repente eu já não estava mais lá... Onde estava? Deslocar-se sem movimento dos pés. Seguir, mas o que?

Um passado no agora me tombando pro esquecimento. Estou outro ou nenhum. Etiqueta, Menino! Dizia minha mãe. Até que ela se foi, depois eu. Ficou só a etiqueta. Não! Quando eu for embora, vou deixar a porta aberta. Um passo, pouco mais que nada. Nem andar, mas pra onde? Seguia me perguntando.

O Descomeço é sempre o fim? Ou iniciar também é encerrar? O que falta é ter coragem! Se a morte é uma passagem, onde se compra o bilhete? Tudo passa, nada fica. Vida breve, descanso eterno! Viver é esperar a morte, depois que ela chega a vida parte.

Por exemplo, enquanto a vida tá jogando, a morte tá se aquecendo no canto da quadra. Viver todos os dias é morrer sempre! É estar predestinado ao fracasso sem nem saber porque. Ou à uma vitória que se tem sem suar. Depende. Estou vivo, mas até quando?

O corpo cala a vida ou a morte leva ela pra passear? Tenho medo de morrer. Dizia à um amigo. Engraçado eu tenho de viver. Ele me respondia. Vamos trocar? Combinamos! Mas eu pensava, o melhor homem é aquele que nasce morto. Porque desde o início ele já sabe onde tudo vai parar. Afinal, a morte é uma Disneylândia que ninguém volta pra explicar se é boa ou ruim, mesmo assim todo mundo põe a travessa com as orelinhas e vai!

Estar morto é partir e não ter palavras de carne pra explicar como é! A morte é um segredo que nunca foi contado. Um prato tão gostoso que ninguém quer dividir. Pra mim, bom mesmo é o cara que sabe morrer e faz por prazer! Tem gente que já morreu e continua vivendo só de sacanagem!

Pra morrer é muito simples o difícil mesmo é voltar depois e contar como se faz. O lado de lá, o lado daqui. Em que lado estarei ao partir? Aliás, eu só tenho uma pergunta: como eu faço pra voltar?

E dizem: Morri de rir, ou morri de chorar. E ainda, morri de medo. Balela! Ninguém que conjuga esse verbo na primeira pessoa e no passado diz a verdade. Quem morre aqui, vive pra onde? Quem vive aqui, morreu pro lado de lá?

Se a vida é uma novela, a morte é a tela quente? A vida vem depois da morte ou a morte vem depois da vida? Por que se não a morte seria o jornal nacional... ah não sei! Só sei que morrer é que nem entrar numa floresta sem deixar as migalhas de pão pra gente ir comendo. Faz assim, depois que eu morrer eu volto pra ti contar.

Até porque o que eu acho é que a morte é uma longa viagem rumo à parte alguma, onde quem morre fica mudo pra quem vive e quem vive fica surdo pra quem morre. O morto é um viajante bem quietinho, que disse assim: - Passagem só de ida, por favor!

A morte é igual a vida, só que é do outro lado entende? Fulano ri na cara da morte. Cicrano viu a morte bem de perto. E o que ela disse? Volta pra lá, e ele obedeceu. Quando você foi embora ficou um vazio aqui. Quando você estava aqui, havia um vazio lá? Não se sabe!

É como se uma parte de mim tivesse ido embora com ele, mas não sei pra onde. E estar morto é simplesmente se constatar que não se pode voltar. Afinal, a morte é um destino que nunca se almeja chegar e ainda assim não se erra o caminho. Nasceu chorando e morreu sorrindo: então aqui deve ser pior. Se o aqui é aqui, o lá é onde?

Quem mata abre uma porta e fecha outra, mas não conhece chave alguma. Matar é ensinar um caminho que nunca se aprendeu. Já suicidar-se é encontrar uma chave e depois perdê-la.

Por fim, o maior propósito da vida é a morte. Morrer é aprender a voar e esquecer como se anda. A morte é um tipo de tédio sem fim. O que se deve é absorver a morte como um álibi para um fim que é dado ao próprio destino de nunca chegar.

(IMAGEM by Myriam VilasBoas)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Histórias de Nelson que ouvi atrás da porta n° I: ACORDO


Silêncio. Era silêncio que tivera transformado a vida miserável daqueles dois que agora mau se olhavam.
Adelzira tinha cinqüenta anos, parecia bem mais nos últimos vinte. Ruberval tinha sete a mais e andava cansado de tudo.
Os gêmeos se mudaram para o conjugado da Sá Ferreira. “Privacidade” eles repetiam em coro, enquanto colocavam as malas na Brasília que tiveram comprado com os primeiros oito salários do estágio na firma de seguros.
“Quem contrataria esses dois infelizes?” Ruberval questionava de si para si toda vez que eles contavam as aventuras da repartição no jantar.
Ruberval era assim, descrente de tudo. Parece que a coisa tinha piorado desde que uma de suas lojas no centro tinha fechado pra não deixar o pobre no vermelho. Ele tinha se tornado uma amargura que dava dó. Tratava Adelzira como uma mula, que também não economizava nas patadas. “Escuta bem seu infeliz, pára de beber se não tu vais destruir uma a uma as lojas que meu pai nos deixou percebeste?”, ela dizia assim: “MEU PAI NOS DEIXOU”, pra não deixar margens de que era graças a ela que ele tinha saído da miséria.
Ele, em contra partida, andava bebendo mais a cada dia. “Deus ainda me leva de cirrose”, ele gritava. “Só assim pra me livrar dessa vida tediosa do teu lado”, escancarava para não deixar brechas entre as suas palavras.
É que na lógica diabólica dos dois se um ferisse o que mais lhe tinha de valor no outro, cheque-mate! Adelzira era frustrada por não ter conseguido um casamento brilhante enquanto Ruberval não se conformava em não ter conseguido se tornar um grande empresário como o sogro. Eis as feridas mais facilmente atingíveis dos dois. Mas nem sempre foi assim.
Ruberval conheceu Adelzira numa casa de tortas em Copacabana. Ele estava acompanhado de Alfredo (seu melhor amigo até hoje). Ela estava com Eulália (brigaram há algumas semanas por conta de uns pontos de vista divergentes sobre o fim da novela, nada serio).
O fato é que Eulália fez Adelzira conhecer Ruberval na marra, ao ficar duas horas aos beijos com Alfredo no banco de trás do fusca no mirante do Leme. “Me chamo Adelzira, mas pode me chamar de Adedê”, ela dizia sorridente por de trás dos óculos de gatinha. Eram os anos 60, sexo sem segurança era tão natural quanto chupar chicabom nas tardes de setembro. Foi assim que os gêmeos vieram.
Marco Antônio, filho de Eulália com Alfredo, também tinha sido encomendado no banco de trás do fusca daquela tarde. Mas com eles parecia diferente.
Alfredo vai pra bola toda quarta-feira e Eulália narra com prazer às noitadas inacabáveis para a amiga Adelzira enquanto prepara o jantar. “Até três sem tirar minha filha!”, conta Eulália. “Mas três? No duro?” , questiona a amiga com um misto de inveja e surpresa. “Batata!”, confirma Eulália com um orgulho diabólico. “Pois eu tô besta, percebeste? Ruberval não fazia isso nem nos tempos da casa de tortas”, desabafa Adelzira, ainda mais frustrada e as duas caem na gargalhada.
A bola de toda quarta-feira era uma pequena da repartição que Alfredo mantinha em um apartamento na Urca e o rio de janeiro inteiro sabia. Era o único consolo de Adelzira que ria entre os dentes enquanto a amiga narrava suas peripécias noturnas.
“Bom agora preciso ir porque o Alfredo chega cheio de vontade quando sai da bola”, se despede da amiga entre risos. “Vai com fé!”, dizia Adelzira se questionando se Eulália mentia.
De noite, depois que Adelzira e Ruberval foram para o quarto, a esposa questionou o marido. “Escuta aqui homem, Alfredo e Eulália são felizes no casamento?”. “Até onde eu sei sim...” respondeu Ruberval, tentando entender o que se passava naquela mente insana da esposa. “Por quê?” completou Ruberval. “É que fico me perguntando se Eulália não sabe da pequena da Urca. Já vi até o Marco Antônio comentar disso com os gêmeos”, desabafou Adelzira intrigada. “Pois ela sabe”, respondeu Ruberval sem vacilar. “E não fez nada? Não deu uma dura no marido? Nem um tiro na cara dessa cavalheira? Espeto!”, afirmou Adelzira. “Espeto por quê, mulher? Pois saiba que foi essa fulana que salvou o casamento dos dois compreendeste?”, afirma o marido. “A é? E eu posso saber por quê?”, interroga o marido. “Todo homem que trai é feliz, ama a esposa e é bom pai”, descreve Ruberval quase desejando a vida de Alfredo. “Bem se vê que tu me és fiel. Pelo menos isso. Agora dorme traste. Dorme que a minha cabeça está a ponto de explodir”, tenta concluir Adelzira pondo a cabeça sob o travesseiro e pressionando bem com a mão esquerda. “Adelzira? O que farias se eu arrumasse uma pequena, mas mudasse contigo?” arrisca Ruberval numa ansiedade que lhe fazia suar pela fronte. “Inda não me fiz essa pergunta”, respondeu serena a esposa. “tu me dás um tempo pra pensar no assunto?”, completou Adelzira. “Todo o que precisares”, concluiu Ruberval que apagou o abajour virou-se de costas para a esposa e dormiu um sono profundo como não fazia há tempos.
Três meses depois Ruberval tinha entrado para o time de Alfredo e Adelzira tinha voltado a ser Adedê!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

... MAS ELE ERA ANALFABETO!


- Escreva sobre mim!
Era o que eu dizia quando a tarde caia...
- Vamos, escreva!
Negociava, egóico, com a caneta sem tinta...
- Se não escreveres, se quer uma linha sobre minha vida, a tomo de mim!
Insistia arriscando um suicídio, com tudo, não havia resposta...
- De que valeram as décadas de existência se sumirão ao vento junto com meus delírios? Pega essa caneta e escreva sobre meus naufrágios!
Não vacilava entre minhas palavras com a firmeza de um revólver...
- Olha que eu atiro!
Ameacei...
- 1!
Comecei a contar...
- 2!
Continuei...
- 3!
Atirei...

Delírios ao fugir do Refúgio


- E eras assim, por que não ti lembraste das nossas memórias infindas na noite?
Que fizestes tu das nossas mãos dadas? Ora, por onde?
Tua palavra limpa aquecida de fé nas coisas da vida, mas por que não deste o pesar de nossas lágrimas, mas ora, enfim, por que não suscitas nossas fraquezas num diário íntimo de pesadelos estrelares. O que fizeste tu das nossas guias? Ti perdera quem sabe, na exatidão dos meus passos, passaste. Passaste de pressa e em branco sobre minhas comemorações mensais não ti fizeste presente.
Mas vejamos, por que não eras nascida no tempo dos nossos sonhos pessoais?
Não ti julgava, eu dizia, não me julgara tu pensavas. O que tivera provocado? No entanto esse tempo não pesava mais. Um crime? Um novo sopro de vida nas ventas do vento? Eu a lua, tu a maresia, sobrava de paisagem e minha crença era a de cantar para as estrelas as nossas dores mais brandas. Que era pra não anoitecer. O céu talvez? Ora não pode ser!
Viera da zona segura dos meus abraços. Por que não deste a ti a vontade infinda de mim, minha caneta escrevia, contudo teu pensamento que vagava. Minhas mãos analfabetas do teu corpo, lhe despiu, me fez cegar, por que não deste a ti a vontade plena de mim? Pensava, escrevia, chorava, sobrava em mim a certeza da desesperança e mastigava as dúvidas de conflitos teus, éramos mais que dois. Por que não deste a ti a vontade de mim?

quarta-feira, 7 de abril de 2010

VISTA DA JANELA


Ele tinha envelhecido bastante desde a última vez. Seu coração havia empedrado dentro do peito ancião, coberto de pelos grisalhos que crispavam a camisa entre os botões. Sorriu-lhe e acenou com a mão, agora enrugada como se a própria pele tivesse assistido todos os acontecimentos: as mortes, os naufrágios, as guerras, as fomes e, sobretudo, os aniversários.
Doutro lado da rua ela, ainda jovem como antes, sorria com ar de piedade e deboche... Ele quis chorar, respirou fundo e seguiu até desaparecer no final da esquina.
Ela também chorou.
Aquele asfalto que agora os afastava nunca foi tão enorme. Parecia um grande mar sem margem, só horizonte. Ela também sumiu na curva da esquina. Agora eles haviam se separado para sempre.
A tarde parecia ser de setembro, não fossem as folhas precipitadas dos galhos tomando o chão daquela avenida. O vendedor de sorvete que conhecia a história dos dois sorriu, viu que ainda era primavera e que não era tempo dos amores se acabarem. “Isso fica para o inverno”, ele cochichou de si para si, enquanto tirava uma lasca do creme glacial de morango para um pequeno rapaz que não compreendia mais nada, a não ser o sabor futuro daquele sorvete gelado sobre a língua. Num paladar complexamente infantil que ficaria para sempre registrado naquela jovem língua que nunca beijara, nunca dissera um desaforo, nunca uma porção de outras coisas que nesse momento pouco importava, se comparado à aquele sabor que era capaz de apagar a tristeza do casal secular, que se cruzara naquela avenida.
Poucas coisas eram tão relevantes....o menino também partira inalando o resto de perfume da moça que sobrara no ar e se misturara ao das flores do canteiro principal. O sorveteiro seguiu a tristeza do ancião, que também ficara no ar com quase o mesmo pesar do perfume do lado oposto.
E nesse ponto surgia uma imagem franzina e lenta que aos poucos ia formando uma segunda mulher. Dessa vez menos solta e faceira. Muito mais mulher do que qualquer outro adjetivo: mulher. Ela era feminina e dócil e quanto mais próximo chegava, mais mulher essa mulher parecia, com um ‘que’ de enigmática no olhar, tinha vestes aristocráticas e aparentava 15, talvez 14 anos.
Os seios eram maduros e recentes dentro daqueles sutiãs que ainda tinham cheiro de fábrica. Notara-se no jeito de andar que ela houvera os abotoado com tamanha delicadeza como quem aproveita todos os segundos por igual... era seu primeiro, e adorava olhar para seus peitos macios no espelho, quando não tinha ninguém por perto. Apreciava como que com um desejo por si própria, os acariciava nos bicos enquanto as maçãs do rosto iam se enrubescendo num excitar explosivamente contido, apertava os dentes e espremia os beiços até que os punhos de alguém pudessem chegar até a porta antecedendo seu próprio nome.
Ela se vestira e correra para aquela esquina, até também desaparecer no fim da rua como uma miragem breve e sem porquê.
Por fim, um homem surge por detrás da esquina, agora quase sem sol, parecia apressado, carregava papéis e um olhar obtuso, como que voltado para si. A jovem do sutiã também retoma a avenida, dessa vez com uma pressa voraz, parecia ter se esquecido de apanhar algo. A pressa e a falta de atenção que os dois partilhavam era tamanha, que num momento se esbarraram e deixaram os papéis do rapaz desenharem plumas no ar enquanto se olhavam.
Era como se Deus tivesse escrito aquele acontecimento com tanto capricho que as cores eram surreais e não havia som algum... uma mudes tomou conta dos dois e da avenida, onde apenas se poderia ouvir o som das respirações se misturando numa orquestra de oxigênio e luz profundamente ritmados. Um som de sino quebrou a magnitude do silêncio anunciando sorvete com um berro estupendo noutro lado da rua, que agora parecia minúscula...os papéis ainda voavam, os dois ainda se olhavam e o sorveteiro guardou para si um: recomeçou!