quinta-feira, 30 de junho de 2011

Lembranças das geladeiras que acendem





De menino ajudava mamãe com a louça depois da janta. Era louco com ela. Loucura sem perigo, quase santa, mas também, sem frescura. Quando me surgia de solavanco, tascava-lhe um beijo bem nos beiços sem titubear. Amor que se consolidava em serviços diversos abdicantes de toda brincadeira: Ora largar a pelada para carregar-lhe as sacolas da feira, ora deixar o pic de lado para varrer a entrada.
Nesse tempo, uma voz qualquer, quase sempre, me mandava deitar. Era verborrágico e meio inflamado, quase sempre, o “Já pra cama, menino!” substituía o “Durma bem, meu filho”, nas noites sem sono.
Naquela altura, já tínhamos nos mudado para uma palafita mais segura, que a de quando Bebeto nasceu. Aliás, quando Bebeto veio ao mundo, muita coisa no mundo melhorou. Coincidência besta, só pra me chatear.
Quando nasci, veio um plano econômico e “Nhau!” nas economias de meu pai. Por causa disso, meu pai virou coronel da patente ditadora da paternidade. Amor, só no fim de semana! O Amor de mamãe era de domingo a domingo com reprise aos sábados, porque a novela ia até mais tarde, naquele aparelho tosco que roubava a atenção da gente e não importava quão bem a desenhasse com o giz de cera, as maldades de Odete eram sempre mais interessantes.
Um dia, alguém finalmente matou a tal Odete, com alguns tiros que só soube de ouvir, porque a mana me tampou os olhos com as mãos gorduchas pra eu não ver, fiz o mesmo no Bebeto, quase que por instinto. Dinda Iaiá sempre nos ensinou que criança que vê sangue, fica grande mais depressa e não há nada, nadinha no mundo que me dava mais medo do que ficar grande depressa. A mana era muito protetora, cuidava de mim e do Bebeto como se fossemos dela. Tinha verdadeira adoração por ela também, mas ser de mamãe era melhor e mais proibido.
Tínhamos uma geladeira amarela carcomida de ferrugem, que mamãe defendia como uma parenta, dizendo que ela era do tempo em que as coisas duravam pra sempre. Tempo em que os móveis atravessavam gerações na família e as pernas das cadeiras só quebravam depois que a tia mais velha de todas, virasse uma estrelinha no céu.
Só depois entendi que éramos muito pobres e que as geladeiras, que tinham uma luzinha que acendia dentro dela, quando se abria a porta, eram mais dispendiosas do que a metade do quanto meu pai ganhava na repartição. Quando a conta de energia elétrica acrescentou alguns zeros, meu pai comprou uma nova, depois de muito ralhar com Dinda Iaiá por secar nossas roupas íntimas e mais urgentes atrás dela. Aliás, nova nada. A família de Naldinho, da rua de baixo, ia mudar-se para o Ceará, e disse que iria comprar uma nova por lá. Vendeu a dele para o meu pai a preço de banana, apesar de não ter entendido muito bem esse valor, porque sempre que mamãe comprava um cacho a mais, meu pai reclamava com voz de trovão. Para a minha frustração e a de Bebeto, a luzinha da geladeira do pai de Naldinho não acendia também.
Quando Naldinho foi embora, a família de Julia comprou o lote. Minha mãe ficou uma chata.
Eu bem me lembro de que nessa mesma época Bebeto tinha tomado o gosto pela maldade e sua genialidade crescia junto com sua estatura, apesar de que ambas, ainda custariam a alcançar as minhas. O duro é que dei pra ser bom. Não tinha nenhuma afinidade com o errado e nem bem jogava as bolinhas de papel higiênico molhadas pela janela na tentativa apaixonada de acertar alguém, logo me ajoelhava e pedia perdão ao menino Jesus, que Dinda Iaiá dizia que perdoa coisa feia que menino fazia, só se não tornasse a fazer. Bebeto não. Cada papel, uma gargalhada. Ficava danado quando ele fazia isso pra se gabar pra Julia. Eita menina pra gostar de mau criação! Toda brincadeira com Julia me rendia horas de um julgamento infinito nos tribunais celestiais do menino Jesus. Sabia que minha sentença era certa, porque com Julia, sempre tornava a fazer. O bem querer de Julia era de uma aritmética medonha onde gostar era proporcional à malícia humana e nisso, Bebeto ganhava de mim em disparada!
Acho que, porque a empresa ia bem e o português deu uma promoção pro papai, ele agora tinha se tornado, curiosamente, uma espécie de palhaço de paletó. Quase sempre que chegava em casa trazia no bolso uma porção de piadas e balas que Julia quase sempre me cobrava em troca de sua companhia.
Um dia, não me recordo exatamente quando, minha mãe precisou levar a mana no médico e deixou Bebeto e eu por conta de Dinda Iaiá que tinha ido emprestada passar uma semana na casa de Julia. Bebeto já não era tão bem quisto por nossa diabólica vizinha, porque suas meninices já não a satisfaziam, eu não. Eu era maduro pra minha idade, como a própria Julia me dizia. Bebeto passou a tarde na rua jogando bola com os meninos da idade dele e eu tive uma tarde onde a infinidade durou um gole ao lado de Julia.
Ela me convidou para brincar de nave espacial debaixo da mesa, onde Dinda Iaiá não nos via. Eu tremia. Tá com Frio? Um pouco, pilota isso direito menina! Calma, tá aqui meu casaco. É de menina! Mamãe diz que abraço resolve. Tá bom, mas só um pouco. Nos olhamos, houve um silêncio ensurdecedor preenchido pelos batimentos do meu coração que já orquestravam um batuque digno de escola de samba. Logo notei que o dela também engrossava o coro de atabaques cardíacos que nos aumentava a temperatura, arrancando nesgas de suor da minha testa. Não tinha mais nave, nem dinda Iaiá. No mundo inteiro só existia Julia e seu cabelo de menina, jeito de menina, andar de menina, mas um olhar propício ao pecado. Naquele instante notei que as bolinhas de papel higiênico molhadas de Bebeto nunca seria páreo para minha maturidade. Ela me olhava com admiração e eu mal conseguia me respirar. Ela esperava algo de mim, algo que não compreendia, pensei em um milhão de coisas: No menino Jesus da Dinda Iaiá enfurecido, em minha mãe assustada, na inveja do Bebeto, na saúde frágil da mana e nas piadas encorajadoras de papai. Deixei de frescura, fechei os olhos e num solavanco, tasquei-lhe um beijo bem nos beiços sem titubear.
Julia retribuiu, mas disse que não queria mais brincar, saiu da mesa tonta e inofensiva. Eu sai atrás, completo de tudo. Preenchido nos lugares da minha alma que nem sabia que existiam. Meu corpo ainda pulsava. Dinda Iaiá, mãe boa que era, me olhou de banda com um sorriso que logo decifrou pra mim numa única frase: Pode deixar que não conto pro menino Jesus! E fez sinal de chavinha com a mão do lado dos lábios cerrados.
De noite, minha mãe foi nos apanhar na casa de Julia. Eu era a personificação do êxtase profundo. Bebeto me perguntou se eu tinha reparado que a geladeira de Julia era uma daquelas que tinham uma luzinha que acendia dentro dela, quando se abria a porta. Eu respondi verborrágico e meio inflamado: “Já pra cama, menino!”.