quarta-feira, 29 de setembro de 2010

29-09-10 - Dia Comum


A chuva deixa a noite mineira ainda mais triste. Depois da décima sexta chegada na última Raia, minha Professora disse: - Relaxa e vai pro chuveiro! Mergulhei o mais fundo que pude e me mantive no fundo o tempo que meus olhos e pulmões agüentaram. Vi os pingos caírem no céu e reverberarem na água da piscina que refletia um tom escuro de azul, imitando a noite. Me senti tão seguro quanto num útero materno, Quente e líquido: - Nada pode me atingir, Pensei e quando pensei já estava do lado de fora sendo abraçado pelo frio daquela noite misteriosamente diferente. Algo deveria estar mudando em mim, ou no mundo do lado de fora daquela piscina.
Na faculdade assisti a um filme da Varda sobre uma fotografia que ela tirara em 1964 em algum lugar da Europa. Era linda! Ainda posso vê-la: Em Pê e Bê um mar enorme, tem um homem e uma criança. Ambos estão nus. O homem olha para o mar e a criança para quem olha a foto, de uma maneira tão amorosa que era como se ele estivesse sentindo a segurança da piscina que sentira minutos antes. Talvez meu olhar estivesse assim. O mais intrigante da fotografia é que no primeiro plano havia uma cabra morta deitada nas pedras da praia, como se tivesse acabado de cair ali. Era o tom triste que faltava na beleza daquela imagem tão lindamente resgatada pela diretora. Tive num obstante uma emoção contida. Lá fora a chuva ainda caía cada vez com mais força, e mais força, e mais força, e mais força... O céu parecia desabar e confesso, naquele momento, eu também!
No carro, meu primo tinha uma discussão decisiva. Eles pareciam terminar enquanto a chuva caia. Dei um ‘boa noite’ sem resposta. A porta do automóvel se fechou e segui calado até minha casa. Ele ritmava ao telefone o quedar da chuva com sua discussão. Era amena, branda e sem eloqüência. Pontuada por relâmpagos, como se o céu parecesse responder ao que ele dizia. Tive medo, depois pesar. As cores das luzes da cidade se desfaziam ante ao vidro embaçado. Imagens coloridas se formavam como numa exposição multicolor. Uma espécie de cinema bizarro que ainda mantinha como trilha o som de um fim ao telefone. Eu ali, um intruso, um expectador da vida real. Invisível, só me fiz notar quando o carro parou no meio fio em frente ao portão de ferro do nosso prédio. Na impossibilidade de falar com ele, escrevi com o dedo no vidro embaçado: “Te espero em casa”, e saltei na chuva rumo ao meu apartamento.
Em casa, ao notar a beleza e a força daquela água que não acabava de cair jamais me despi e fui assim, só de cuecas ao encontro dela na varanda. Enquanto todos se protegiam nas ilhargas das calçadas ou sob as paradas de ônibus eu dançava na chuva em silêncio. E parava sempre que a noite clareava com um relâmpago seguido de um estrondoso trovão, mas não me intimidava. Pensava nessa busca incessante do trovão pelo relâmpago. Desde sempre para sempre. Prometido a nunca alcançá-lo. Sempre um após o outro. Jamais unidos, jamais encontrados, ainda que por uma fração de segundos sempre um frente ao outro, sem nunca se tocarem, sem se quer se conhecerem. A real busca de nunca alcançar, mas ainda assim tentando. Ainda assim seguindo. Ainda assim sendo trovão após relâmpago. A beleza da busca estava mesmo em jamais alcançar. Luz e som: procura sem encontro. A beleza de nunca chegar.
Conversei com Deus. O chamei de Pai e expus minhas lamurias como um filho mimado. Perguntei os motivos de eu estar vivendo tão longe de casa. O propósito de eu não encontrar trabalho, A necessidade que havia de continuar amando sem ser amado. Depois pedi que com aquela chuva Ele me lavasse. Que tirasse de mim todas as impurezas do pecado (porque acredito em pecado). Que essa cena noturna fosse a metáfora exata do propósito do Sangue de Cristo no Calvário. Conversei com Ele em Francês, Inglês em Línguas estranhas e por fim em português. Nesse momento meu primo apareceu por detrás da luza da porta da cozinha com uma toalha e muitas preocupações. Sorri, agradeci, me despedi de Deus e voltei pra dentro de casa, onde estava quente. Meu primo não me contou o desfecho com a noiva, aliás, creio que eles ainda estejam se falando ao telefone, porque ainda vejo os relâmpagos como resposta, da janela do meu quarto... E em meu frágil coração, uma sensação doce de que amanhã tudo pode acontecer, inclusive nada!

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Histórias de Nelson que ouvi atrás da porta n° 2 : FALECIDA


Passou um batom cor-de-boca e desapareceu escada abaixo sem derramar uma mísera lágrima durante todo o trajeto até a sua casa. Epiláfio, em contra-partida deslizou na parede e se encolheu feito um feto no chão da sala: imóvel. Apenas lhe compunha à imagem de pobre diabo as contrações repentinas de dor e amargura que lhe palpitavam como soluços involuntários. Pensou que fosse morrer.
No outro dia a imagem da sala era aterradora. Epiláfio dormira na mesma posição em que caíra. Ao redor dele um cinzeiro repleto, livros e discos espalhados, em meio as roupas sujas de Alaliáscara com as quais dormira abraçado. Acordou assim que o sol se fez presente na janela descortinada do apartamento ordinário da Francisco Sá. Sua boca, uma amargura tão profunda que fora como se todo o fel que encobrira seu coração tivesse sido vomitado na madrugada. Acordou outro.
Na repartição quando lhe perguntavam em que pé andava a situação ele era categórico: Está morta! Utilizara essa frase tão exaustivamente que invariavelmente recebera um “Meus pêsames” como resposta. Nesse contexto sempre agradecia e seguia sua vida adiante. O destino que Epiláfio houvera dado à Alaliáscara fora tão convincente que até mantinha certa nostalgia ao desenterrar suas memórias: - Uma santa mulher! - Suspirava de si para si, como se a tal fulana estivesse, de fato, morta. Era tão fiel à memória da falecida que no dia de finados comprou flores amarelas e levou até o cemitério do Bonfim, decidiu não entrar, sob a desculpa do calor, deixara o ramalhete à porta, fizera o sinal da cruz e voltara para casa.
No dia seguinte foi até o quarto de sua mãe e disparou: - A partir de hoje só me visto de preto compreendeu? - A mãe, pobre coitada, numa velhice contundente, examinou as caixas de remédio para confirmar se tivera esquecido algum. Ao se deparar com sua saúde mental intacta pensou: - Espeto!
Epiláfio passou meses numa viuvez honesta. Na repartição nem se tocava mais no assunto, a fulana era mesmo dada como morta e enterrada, alguns amigos até tentavam animá-lo: – Vambora pro clube Epiláfio. Ainda és muito jovem rapaz, bola pra frente! – Mas ele era irremediável: - Vão vocês, minha vitalidade morreu junto com Alaliáscara. Podem ir – determinava o viúvo. – Pelo menos nos leve até lá então? – pediu Nogueira, na expectativa de que chegando lá o colocassem fora do carro e o ajudassem a esquecer a falecida. – Fechado, uma carona eu dou, mas não descerei do carro ouviram? – E os rapazes piscaram uns para os outros enquanto acenavam positivamente com a cabeça.
Na altura da Afonso Pena o semáforo fechara, a noite fazia calor e os rapazes baixaram os vidros do automóvel enquanto ele ia parando na faixa. De dentro do carro, naquela esquina se pode ver. Era ela, a falecida, mais viva do que nunca, aos beijos com um cavalheiro de porte franzino, bem menor que Epiláfio, mas estavam num furor que pareciam que se alimentavam um do outro pela boca. E ela ria alto enquanto o franzino mancebo lhe beijava as nucas e as maçãs do rosto. Uma pouca vergonha digna de platéia.
No carro foi uma comoção geral, os três colegas de Epiláfio num misto de confusão e indignação começaram a questioná-lo e a mau dizê-la como que tentando compreender aquela cena. Epiláfio foi tragado por um pavor tremendo, os olhos encheram-se de lágrimas e de súbito sem responder às indagações dos rapazes ele pôs o pé tão fundo naquele acelerador em direção ao casal que era como se o carro tivesse sido tomado por um tufão. Ouviu-se um grande grito na avenida seguido de um estrondo indescritível. Epiláfio deu cabo da vida de Alaliáscara.
No hospital, quando o delegado do distrito interpelou Epiláfio, semi-consciente na maca, sobre o que ocorrera, o pobre-diabo só disse uma frase: - Ela já era falecida, Doutor!