sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Histórias de Nelson que ouvi atrás da porta n° 2 : FALECIDA


Passou um batom cor-de-boca e desapareceu escada abaixo sem derramar uma mísera lágrima durante todo o trajeto até a sua casa. Epiláfio, em contra-partida deslizou na parede e se encolheu feito um feto no chão da sala: imóvel. Apenas lhe compunha à imagem de pobre diabo as contrações repentinas de dor e amargura que lhe palpitavam como soluços involuntários. Pensou que fosse morrer.
No outro dia a imagem da sala era aterradora. Epiláfio dormira na mesma posição em que caíra. Ao redor dele um cinzeiro repleto, livros e discos espalhados, em meio as roupas sujas de Alaliáscara com as quais dormira abraçado. Acordou assim que o sol se fez presente na janela descortinada do apartamento ordinário da Francisco Sá. Sua boca, uma amargura tão profunda que fora como se todo o fel que encobrira seu coração tivesse sido vomitado na madrugada. Acordou outro.
Na repartição quando lhe perguntavam em que pé andava a situação ele era categórico: Está morta! Utilizara essa frase tão exaustivamente que invariavelmente recebera um “Meus pêsames” como resposta. Nesse contexto sempre agradecia e seguia sua vida adiante. O destino que Epiláfio houvera dado à Alaliáscara fora tão convincente que até mantinha certa nostalgia ao desenterrar suas memórias: - Uma santa mulher! - Suspirava de si para si, como se a tal fulana estivesse, de fato, morta. Era tão fiel à memória da falecida que no dia de finados comprou flores amarelas e levou até o cemitério do Bonfim, decidiu não entrar, sob a desculpa do calor, deixara o ramalhete à porta, fizera o sinal da cruz e voltara para casa.
No dia seguinte foi até o quarto de sua mãe e disparou: - A partir de hoje só me visto de preto compreendeu? - A mãe, pobre coitada, numa velhice contundente, examinou as caixas de remédio para confirmar se tivera esquecido algum. Ao se deparar com sua saúde mental intacta pensou: - Espeto!
Epiláfio passou meses numa viuvez honesta. Na repartição nem se tocava mais no assunto, a fulana era mesmo dada como morta e enterrada, alguns amigos até tentavam animá-lo: – Vambora pro clube Epiláfio. Ainda és muito jovem rapaz, bola pra frente! – Mas ele era irremediável: - Vão vocês, minha vitalidade morreu junto com Alaliáscara. Podem ir – determinava o viúvo. – Pelo menos nos leve até lá então? – pediu Nogueira, na expectativa de que chegando lá o colocassem fora do carro e o ajudassem a esquecer a falecida. – Fechado, uma carona eu dou, mas não descerei do carro ouviram? – E os rapazes piscaram uns para os outros enquanto acenavam positivamente com a cabeça.
Na altura da Afonso Pena o semáforo fechara, a noite fazia calor e os rapazes baixaram os vidros do automóvel enquanto ele ia parando na faixa. De dentro do carro, naquela esquina se pode ver. Era ela, a falecida, mais viva do que nunca, aos beijos com um cavalheiro de porte franzino, bem menor que Epiláfio, mas estavam num furor que pareciam que se alimentavam um do outro pela boca. E ela ria alto enquanto o franzino mancebo lhe beijava as nucas e as maçãs do rosto. Uma pouca vergonha digna de platéia.
No carro foi uma comoção geral, os três colegas de Epiláfio num misto de confusão e indignação começaram a questioná-lo e a mau dizê-la como que tentando compreender aquela cena. Epiláfio foi tragado por um pavor tremendo, os olhos encheram-se de lágrimas e de súbito sem responder às indagações dos rapazes ele pôs o pé tão fundo naquele acelerador em direção ao casal que era como se o carro tivesse sido tomado por um tufão. Ouviu-se um grande grito na avenida seguido de um estrondo indescritível. Epiláfio deu cabo da vida de Alaliáscara.
No hospital, quando o delegado do distrito interpelou Epiláfio, semi-consciente na maca, sobre o que ocorrera, o pobre-diabo só disse uma frase: - Ela já era falecida, Doutor!

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