quarta-feira, 7 de abril de 2010

VISTA DA JANELA


Ele tinha envelhecido bastante desde a última vez. Seu coração havia empedrado dentro do peito ancião, coberto de pelos grisalhos que crispavam a camisa entre os botões. Sorriu-lhe e acenou com a mão, agora enrugada como se a própria pele tivesse assistido todos os acontecimentos: as mortes, os naufrágios, as guerras, as fomes e, sobretudo, os aniversários.
Doutro lado da rua ela, ainda jovem como antes, sorria com ar de piedade e deboche... Ele quis chorar, respirou fundo e seguiu até desaparecer no final da esquina.
Ela também chorou.
Aquele asfalto que agora os afastava nunca foi tão enorme. Parecia um grande mar sem margem, só horizonte. Ela também sumiu na curva da esquina. Agora eles haviam se separado para sempre.
A tarde parecia ser de setembro, não fossem as folhas precipitadas dos galhos tomando o chão daquela avenida. O vendedor de sorvete que conhecia a história dos dois sorriu, viu que ainda era primavera e que não era tempo dos amores se acabarem. “Isso fica para o inverno”, ele cochichou de si para si, enquanto tirava uma lasca do creme glacial de morango para um pequeno rapaz que não compreendia mais nada, a não ser o sabor futuro daquele sorvete gelado sobre a língua. Num paladar complexamente infantil que ficaria para sempre registrado naquela jovem língua que nunca beijara, nunca dissera um desaforo, nunca uma porção de outras coisas que nesse momento pouco importava, se comparado à aquele sabor que era capaz de apagar a tristeza do casal secular, que se cruzara naquela avenida.
Poucas coisas eram tão relevantes....o menino também partira inalando o resto de perfume da moça que sobrara no ar e se misturara ao das flores do canteiro principal. O sorveteiro seguiu a tristeza do ancião, que também ficara no ar com quase o mesmo pesar do perfume do lado oposto.
E nesse ponto surgia uma imagem franzina e lenta que aos poucos ia formando uma segunda mulher. Dessa vez menos solta e faceira. Muito mais mulher do que qualquer outro adjetivo: mulher. Ela era feminina e dócil e quanto mais próximo chegava, mais mulher essa mulher parecia, com um ‘que’ de enigmática no olhar, tinha vestes aristocráticas e aparentava 15, talvez 14 anos.
Os seios eram maduros e recentes dentro daqueles sutiãs que ainda tinham cheiro de fábrica. Notara-se no jeito de andar que ela houvera os abotoado com tamanha delicadeza como quem aproveita todos os segundos por igual... era seu primeiro, e adorava olhar para seus peitos macios no espelho, quando não tinha ninguém por perto. Apreciava como que com um desejo por si própria, os acariciava nos bicos enquanto as maçãs do rosto iam se enrubescendo num excitar explosivamente contido, apertava os dentes e espremia os beiços até que os punhos de alguém pudessem chegar até a porta antecedendo seu próprio nome.
Ela se vestira e correra para aquela esquina, até também desaparecer no fim da rua como uma miragem breve e sem porquê.
Por fim, um homem surge por detrás da esquina, agora quase sem sol, parecia apressado, carregava papéis e um olhar obtuso, como que voltado para si. A jovem do sutiã também retoma a avenida, dessa vez com uma pressa voraz, parecia ter se esquecido de apanhar algo. A pressa e a falta de atenção que os dois partilhavam era tamanha, que num momento se esbarraram e deixaram os papéis do rapaz desenharem plumas no ar enquanto se olhavam.
Era como se Deus tivesse escrito aquele acontecimento com tanto capricho que as cores eram surreais e não havia som algum... uma mudes tomou conta dos dois e da avenida, onde apenas se poderia ouvir o som das respirações se misturando numa orquestra de oxigênio e luz profundamente ritmados. Um som de sino quebrou a magnitude do silêncio anunciando sorvete com um berro estupendo noutro lado da rua, que agora parecia minúscula...os papéis ainda voavam, os dois ainda se olhavam e o sorveteiro guardou para si um: recomeçou!

4 comentários:

Shaianna disse...

Definitivamente demais ... nós somos demais!!! hahahahahaha

Rosana Rosario disse...

Adorei seu blog! Escreva mais!:) bjsss

Ana Paula disse...

Que delicado!
Adorei!
Escreva sempre, garoto! Virei sempre conferir "tuas" ideias(é muito feios escrever idéia sem acento... rs)
Um beijo grande, companheiro!

Nina Salgado disse...

Gostei demais. Sabe aquela coisa da Elaine de dizer "arrepiei"? Então. Rolou!