domingo, 4 de setembro de 2011

Sem tirar nem por





- Desculpa... não devia ter ligado...
- Imagina! Calma... não desliga... é que cê me pegou de surpresa...
- Cê tá ocupado? Tá com alguém aí?
- Não, não. Não tô com ninguém.. pode falar...
- é que você me mandou seu número pela internet e disse pra ligar, caso precisasse.
- Claro! E o que houve?
- É que ele teve aqui noite passada...
- e?
- E ele tentou voltar. Me falou aquele milhão de asneiras... disse que ia mudar... prometeu mundos e fundos...
- e você?
- eu o que?
- o que cê sentiu diante disso?
- já te disse que não existe possibilidade nenhuma!
- ufa!
- o que você disse?
- nada... Deve ser a tv...
- hummm...
- Sabe... faz tempo que não conheço ninguém assim...
- Assim como?
- Decidida, cabeça feita... peito aberto!
- Sério? Você me vê assim?
- vejo!
- Que bom! Não me sinto assim...
- Mas és! Pensei em você esses dias... digo... no que conversamos noite passada... tudo se encaixa tanto na minha vida!
- Sério? Que bom! Aqui... eu preciso desligar... já foi ótimo termos essa meia dúzia de prosa..
- Sério? Você já tem que desligar?
- Ele tá na porta, quero ver o que ele quer! Não aguento mais!
- É... tudo bem! Te cuida! Qualquer coisa tô aqui... toma cuidado com esse mau caráter... conta comigo!
- Obrigada! Contarei! Até breve...
- Até!
Desligou e o mundo dele agora era diferente do de antes da ligação. O dela era o mesmo, sem tirar nem por!

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Alzheimer




A porta já estava aberta, quando ela chegou. Já fazia mais de um mês que ninguém entreva lá sem que ela estivesse presente. A barriga ganhou um frio indescritível e as pernas pareciam que não suportariam mais o peso do corpo por muito tempo. Ela sentou.
Diz-se que já não ia muito bem de saúde e qualquer emoção mais temperada poder-lhe-ia atacar os nervos. – Quem deve ter entrado aqui?! Perguntou de si para si. Mas na boca só cabia a amargura do pavor.
Voltou pro quarto correndo e quis ligar para a filha... O número lhe faltava a memória
Desligou!
Num segundo depois olhou para o espelho e viu alguém com suas roupas, o seu batom o seu jeito! Sentiu um pavor lancinante e procurou pela casa o marido falecido... Tornou a dormir.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Lembranças das geladeiras que acendem





De menino ajudava mamãe com a louça depois da janta. Era louco com ela. Loucura sem perigo, quase santa, mas também, sem frescura. Quando me surgia de solavanco, tascava-lhe um beijo bem nos beiços sem titubear. Amor que se consolidava em serviços diversos abdicantes de toda brincadeira: Ora largar a pelada para carregar-lhe as sacolas da feira, ora deixar o pic de lado para varrer a entrada.
Nesse tempo, uma voz qualquer, quase sempre, me mandava deitar. Era verborrágico e meio inflamado, quase sempre, o “Já pra cama, menino!” substituía o “Durma bem, meu filho”, nas noites sem sono.
Naquela altura, já tínhamos nos mudado para uma palafita mais segura, que a de quando Bebeto nasceu. Aliás, quando Bebeto veio ao mundo, muita coisa no mundo melhorou. Coincidência besta, só pra me chatear.
Quando nasci, veio um plano econômico e “Nhau!” nas economias de meu pai. Por causa disso, meu pai virou coronel da patente ditadora da paternidade. Amor, só no fim de semana! O Amor de mamãe era de domingo a domingo com reprise aos sábados, porque a novela ia até mais tarde, naquele aparelho tosco que roubava a atenção da gente e não importava quão bem a desenhasse com o giz de cera, as maldades de Odete eram sempre mais interessantes.
Um dia, alguém finalmente matou a tal Odete, com alguns tiros que só soube de ouvir, porque a mana me tampou os olhos com as mãos gorduchas pra eu não ver, fiz o mesmo no Bebeto, quase que por instinto. Dinda Iaiá sempre nos ensinou que criança que vê sangue, fica grande mais depressa e não há nada, nadinha no mundo que me dava mais medo do que ficar grande depressa. A mana era muito protetora, cuidava de mim e do Bebeto como se fossemos dela. Tinha verdadeira adoração por ela também, mas ser de mamãe era melhor e mais proibido.
Tínhamos uma geladeira amarela carcomida de ferrugem, que mamãe defendia como uma parenta, dizendo que ela era do tempo em que as coisas duravam pra sempre. Tempo em que os móveis atravessavam gerações na família e as pernas das cadeiras só quebravam depois que a tia mais velha de todas, virasse uma estrelinha no céu.
Só depois entendi que éramos muito pobres e que as geladeiras, que tinham uma luzinha que acendia dentro dela, quando se abria a porta, eram mais dispendiosas do que a metade do quanto meu pai ganhava na repartição. Quando a conta de energia elétrica acrescentou alguns zeros, meu pai comprou uma nova, depois de muito ralhar com Dinda Iaiá por secar nossas roupas íntimas e mais urgentes atrás dela. Aliás, nova nada. A família de Naldinho, da rua de baixo, ia mudar-se para o Ceará, e disse que iria comprar uma nova por lá. Vendeu a dele para o meu pai a preço de banana, apesar de não ter entendido muito bem esse valor, porque sempre que mamãe comprava um cacho a mais, meu pai reclamava com voz de trovão. Para a minha frustração e a de Bebeto, a luzinha da geladeira do pai de Naldinho não acendia também.
Quando Naldinho foi embora, a família de Julia comprou o lote. Minha mãe ficou uma chata.
Eu bem me lembro de que nessa mesma época Bebeto tinha tomado o gosto pela maldade e sua genialidade crescia junto com sua estatura, apesar de que ambas, ainda custariam a alcançar as minhas. O duro é que dei pra ser bom. Não tinha nenhuma afinidade com o errado e nem bem jogava as bolinhas de papel higiênico molhadas pela janela na tentativa apaixonada de acertar alguém, logo me ajoelhava e pedia perdão ao menino Jesus, que Dinda Iaiá dizia que perdoa coisa feia que menino fazia, só se não tornasse a fazer. Bebeto não. Cada papel, uma gargalhada. Ficava danado quando ele fazia isso pra se gabar pra Julia. Eita menina pra gostar de mau criação! Toda brincadeira com Julia me rendia horas de um julgamento infinito nos tribunais celestiais do menino Jesus. Sabia que minha sentença era certa, porque com Julia, sempre tornava a fazer. O bem querer de Julia era de uma aritmética medonha onde gostar era proporcional à malícia humana e nisso, Bebeto ganhava de mim em disparada!
Acho que, porque a empresa ia bem e o português deu uma promoção pro papai, ele agora tinha se tornado, curiosamente, uma espécie de palhaço de paletó. Quase sempre que chegava em casa trazia no bolso uma porção de piadas e balas que Julia quase sempre me cobrava em troca de sua companhia.
Um dia, não me recordo exatamente quando, minha mãe precisou levar a mana no médico e deixou Bebeto e eu por conta de Dinda Iaiá que tinha ido emprestada passar uma semana na casa de Julia. Bebeto já não era tão bem quisto por nossa diabólica vizinha, porque suas meninices já não a satisfaziam, eu não. Eu era maduro pra minha idade, como a própria Julia me dizia. Bebeto passou a tarde na rua jogando bola com os meninos da idade dele e eu tive uma tarde onde a infinidade durou um gole ao lado de Julia.
Ela me convidou para brincar de nave espacial debaixo da mesa, onde Dinda Iaiá não nos via. Eu tremia. Tá com Frio? Um pouco, pilota isso direito menina! Calma, tá aqui meu casaco. É de menina! Mamãe diz que abraço resolve. Tá bom, mas só um pouco. Nos olhamos, houve um silêncio ensurdecedor preenchido pelos batimentos do meu coração que já orquestravam um batuque digno de escola de samba. Logo notei que o dela também engrossava o coro de atabaques cardíacos que nos aumentava a temperatura, arrancando nesgas de suor da minha testa. Não tinha mais nave, nem dinda Iaiá. No mundo inteiro só existia Julia e seu cabelo de menina, jeito de menina, andar de menina, mas um olhar propício ao pecado. Naquele instante notei que as bolinhas de papel higiênico molhadas de Bebeto nunca seria páreo para minha maturidade. Ela me olhava com admiração e eu mal conseguia me respirar. Ela esperava algo de mim, algo que não compreendia, pensei em um milhão de coisas: No menino Jesus da Dinda Iaiá enfurecido, em minha mãe assustada, na inveja do Bebeto, na saúde frágil da mana e nas piadas encorajadoras de papai. Deixei de frescura, fechei os olhos e num solavanco, tasquei-lhe um beijo bem nos beiços sem titubear.
Julia retribuiu, mas disse que não queria mais brincar, saiu da mesa tonta e inofensiva. Eu sai atrás, completo de tudo. Preenchido nos lugares da minha alma que nem sabia que existiam. Meu corpo ainda pulsava. Dinda Iaiá, mãe boa que era, me olhou de banda com um sorriso que logo decifrou pra mim numa única frase: Pode deixar que não conto pro menino Jesus! E fez sinal de chavinha com a mão do lado dos lábios cerrados.
De noite, minha mãe foi nos apanhar na casa de Julia. Eu era a personificação do êxtase profundo. Bebeto me perguntou se eu tinha reparado que a geladeira de Julia era uma daquelas que tinham uma luzinha que acendia dentro dela, quando se abria a porta. Eu respondi verborrágico e meio inflamado: “Já pra cama, menino!”.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Carta ao tempo em gratidão pela Rubrinescência inesperada

Caríssimo tempo,
Trago minhas mãos vazias como quem traga a noite num gole. Atraso o tiro no escuro e protejo-me os olhos.
Com que cara haveriam as mortalhas de se arrastar diante do claro da balada à seco?
Prosa caótica de uma frustração remissiva que, sustentada pela aurora de olhos infindos, se descarta no ar.
Era feita de bêbada semelhança e concretude em silêncio: Não há resposta.
Gilete arqueada na gengiva, o suspiro do corte, a liquidez do sangue que esvoala-se em cala-frios pela boca a fora.
Com que cara haveriam as gralhas de rosnar anunciando o desfecho da vida?
Como uma pétala de ouro que se atira rio à cima, de pó em cal as construções de quem eu era vai se desmanchando contra o vento e o sal que projetam-me os dias!
Toda carta tem a sorte e o azar, contida nela. Toda jogada, o acerto e o equívoco. Todo lance: um preço.
Em meus dias, as horas se sustentavam em dores sustenidas até que, num milagre da espera, nasceu a rubrinescência inesperada!
Com que cara haveriam as flores de se abrir naquele dia?
Um céu enxergava os acontecimentos e de véu em vez as tristezas iam se dissolvendo na epifania de um asfalto encharcado, docemente visitado pelo sol.
De véu em vez, as dores foram se abrandando da fogueira eloqüente das minhas memórias e bandeiras começavam a ser arqueadas enquanto minhas lágrimas já não tinham mais o motivo da queda: Me chamam felicidade, agora!
Tempo, poesia inventada pelo homem. Sem antes nem depois, assola-me a calma, saber que tens cumprido tua vocação de andarilho e me mostrado a fronte de um por vir acompanhado da cor, do aroma, da beleza e da concretude de uma vértebra materializada em amor:
Priméva num alqueire de luz que afugenta o breu.
Mulher que incendeia minha história e faz nascer meu futuro sem sombra nem mácula.
Pra sempre amiga, eternizada pela rubrinescência de um dia qualquer.
Tempo, sou grato a ti pela tolerância. Te agradeço a agonia da caminhada. Te sou grato pelos devaneios do “nunca chegar”. Porque agora sei que quando se alcança a chegada, ante a um deserto, sob os olhos sem fim, se pode coroar de realização aquilo que antes era espera.
Amor,
Eu

sábado, 29 de janeiro de 2011

ANARUBRA e SESSIM


Anarubra era uma menina que tentava querer ser mulher, fazia tempo. Ouviu dizer que a chave que abria essa porta entre a menina e a mulher era um beijo, e tascou-lhe beijo em todo mundo que via pela frente: No tenente disse que o gosto era ruim e no Sessim disse que não se beijava assim. No Teobaldo disse que o gosto era amargo e com o João, que não se beija com a mão.

Anarubra beijou tanto, demais da conta, que por algum motivo que não sabia explicar, seu coração foi ficando pequenininho, do tamanho de uma culpa. Aí, Anarubra foi a igreja que foi onde ouviu que se deixavam as culpas, quando chegou lá viu tanta gente na fila das culpas que quase desistiu de se desculpar, então Anarubra sentou num banco e viu que tinha uma senhora que tava carregando uma culpa tão grande que parecia ser mais pesada do que a dela, porque de tanto espremer o coração da senhora, já saia o sumo pelos olhos num soluço de dá dor. Anarubra viu que a tal senhora tava se desculpando sozinha, sem entrar na fila, ajoelhou e começou a se desculpar também. Ela dizia assim:

Bom... vim aqui porque quero meu coração de volta, do tamanho que ele era antes, mas pra isso tenho que deixar aqui essa culpa que de tão grande me deixa quase sem ar. Quero confessar que tava querendo ser mulher, mas não encontrei a chave, só a culpa...
Aí, Anarubra saiu da igreja crente que seu coração tinha recuperado o tamanho e foi tomar um sorvete, porque o dia tava quente, e se desculpar queima a pele da gente com um fogo chamado vergonha. Esse fogo é tão quente que nasce dos olhos de quem ouve a gente se desculpar, no caso de Ana, a tal senhora da culpa maior que a dela.

Mas, Anarubra ainda queria querer ser mulher, e ouviu falar que pra ser mulher tem de se deitar do lado de um homem, menino não bastava. Pra menino ajudar a menina a virar mulher, tinha que ser homem antes, mas pra menino ser homem, tinha que se deitar do lado de uma mulher, menina não bastava. Pra menina ajudar a menino a virar homem, tinha que ser mulher antes. Então Anarubra pediu pra se deitar com o Seu Manoel, que era padeiro da cidade e tinha se deitado com a Tia de Ana, que já era mulher, então, Ana pensou, Se minha tia é mulher, seu Manoel deve ser homem, a uma hora dessas, mas seu Manoel ficou vermelho, acho que com o tal fogo da vergonha, e mandou Anarubra voltar pra casa.

No caminho, Ana encontrou Sessim e lhe explicou o que tinha aprendido, Sessim queria ajudar Ana a ser mulher, mas ainda não tinha se deitado com uma, por tanto, não era homem ainda. Mas o menino queria tanto ajudar Anarubra que a vontade foi maior que a verdade. Verdade é quando se fala do que aconteceu. Mentira é quando se fala do que não aconteceu. Mas fé é quando se fala de algo que ainda não aconteceu, mas que junta tanta querência que acaba acontecendo e virando verdade. E Sessim tinha fé. Sobre tudo quando se tratava de Anarubra.

Então Sessim disse pra Anarubra que já tinha deitado com mulher, lá pras bandas de Ilhéus, Anarubra não acreditou, mas achou tão bonito ver que Sessim tinha se esforçado pra inventar aquela história tão bonita que parecia até coisa de quem já é homem.

Anarubra escolheu o lugar e os dois foram juntos. Levaram travesseiros e uma garrafa térmica com café quente por causa do frio. Frio, nesses casos, é quando a gente quer tanto uma coisa por dentro que o corpo começa a tremer querendo fazer sozinho, tem quem chame de “nervoso”.

Ao chegar Anarubra deitou e ficou olhando para o céu cheinho de estrelas. Sessim deitou do lado e não deu uma palavra. Ana perguntou se agora já era mulher, mas como Sessim queria ficar mais um pouco assim com ela, juntinho, quase um só, disse que ainda não. Lá pelas tantas Anarubra se irritou juntou as coisas e foi-se embora, com muita raiva, uma tão grande que fazia a boca dela dizer coisa que o coração não concordava.

O tempo passou e Anarubra finalmente conseguiu ser mulher com um homem que trabalhava na cidade e vivia ajudando menina a virar mulher, tanto que tinha o coração pequenininho de tanta culpa. Tanta que não tinha espaço pra Anarubra, mas aí ela já não queria mais querer ser, mas já era tarde.

Anarubra disse que a melhor forma de virar mulher era do modo de Sessim, mesmo que de mentirinha, porque com ele tinha, no coração, espaço de sobra pro tamanho de Ana, e ainda se podia olhar pras estrelas até o corpo parar de tremer de frio e o melhor, o coração de Anarubra, com Sessim, não emiudava de culpa. Pelo contrário, com ele, o coração de Anarubra crescia tanto que não cabia direito no peito... parece que é o que Ana ouviu chamarem de amor, a chave que faz a mulher virar menina outra vez.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

29-09-10 - Dia Comum


A chuva deixa a noite mineira ainda mais triste. Depois da décima sexta chegada na última Raia, minha Professora disse: - Relaxa e vai pro chuveiro! Mergulhei o mais fundo que pude e me mantive no fundo o tempo que meus olhos e pulmões agüentaram. Vi os pingos caírem no céu e reverberarem na água da piscina que refletia um tom escuro de azul, imitando a noite. Me senti tão seguro quanto num útero materno, Quente e líquido: - Nada pode me atingir, Pensei e quando pensei já estava do lado de fora sendo abraçado pelo frio daquela noite misteriosamente diferente. Algo deveria estar mudando em mim, ou no mundo do lado de fora daquela piscina.
Na faculdade assisti a um filme da Varda sobre uma fotografia que ela tirara em 1964 em algum lugar da Europa. Era linda! Ainda posso vê-la: Em Pê e Bê um mar enorme, tem um homem e uma criança. Ambos estão nus. O homem olha para o mar e a criança para quem olha a foto, de uma maneira tão amorosa que era como se ele estivesse sentindo a segurança da piscina que sentira minutos antes. Talvez meu olhar estivesse assim. O mais intrigante da fotografia é que no primeiro plano havia uma cabra morta deitada nas pedras da praia, como se tivesse acabado de cair ali. Era o tom triste que faltava na beleza daquela imagem tão lindamente resgatada pela diretora. Tive num obstante uma emoção contida. Lá fora a chuva ainda caía cada vez com mais força, e mais força, e mais força, e mais força... O céu parecia desabar e confesso, naquele momento, eu também!
No carro, meu primo tinha uma discussão decisiva. Eles pareciam terminar enquanto a chuva caia. Dei um ‘boa noite’ sem resposta. A porta do automóvel se fechou e segui calado até minha casa. Ele ritmava ao telefone o quedar da chuva com sua discussão. Era amena, branda e sem eloqüência. Pontuada por relâmpagos, como se o céu parecesse responder ao que ele dizia. Tive medo, depois pesar. As cores das luzes da cidade se desfaziam ante ao vidro embaçado. Imagens coloridas se formavam como numa exposição multicolor. Uma espécie de cinema bizarro que ainda mantinha como trilha o som de um fim ao telefone. Eu ali, um intruso, um expectador da vida real. Invisível, só me fiz notar quando o carro parou no meio fio em frente ao portão de ferro do nosso prédio. Na impossibilidade de falar com ele, escrevi com o dedo no vidro embaçado: “Te espero em casa”, e saltei na chuva rumo ao meu apartamento.
Em casa, ao notar a beleza e a força daquela água que não acabava de cair jamais me despi e fui assim, só de cuecas ao encontro dela na varanda. Enquanto todos se protegiam nas ilhargas das calçadas ou sob as paradas de ônibus eu dançava na chuva em silêncio. E parava sempre que a noite clareava com um relâmpago seguido de um estrondoso trovão, mas não me intimidava. Pensava nessa busca incessante do trovão pelo relâmpago. Desde sempre para sempre. Prometido a nunca alcançá-lo. Sempre um após o outro. Jamais unidos, jamais encontrados, ainda que por uma fração de segundos sempre um frente ao outro, sem nunca se tocarem, sem se quer se conhecerem. A real busca de nunca alcançar, mas ainda assim tentando. Ainda assim seguindo. Ainda assim sendo trovão após relâmpago. A beleza da busca estava mesmo em jamais alcançar. Luz e som: procura sem encontro. A beleza de nunca chegar.
Conversei com Deus. O chamei de Pai e expus minhas lamurias como um filho mimado. Perguntei os motivos de eu estar vivendo tão longe de casa. O propósito de eu não encontrar trabalho, A necessidade que havia de continuar amando sem ser amado. Depois pedi que com aquela chuva Ele me lavasse. Que tirasse de mim todas as impurezas do pecado (porque acredito em pecado). Que essa cena noturna fosse a metáfora exata do propósito do Sangue de Cristo no Calvário. Conversei com Ele em Francês, Inglês em Línguas estranhas e por fim em português. Nesse momento meu primo apareceu por detrás da luza da porta da cozinha com uma toalha e muitas preocupações. Sorri, agradeci, me despedi de Deus e voltei pra dentro de casa, onde estava quente. Meu primo não me contou o desfecho com a noiva, aliás, creio que eles ainda estejam se falando ao telefone, porque ainda vejo os relâmpagos como resposta, da janela do meu quarto... E em meu frágil coração, uma sensação doce de que amanhã tudo pode acontecer, inclusive nada!

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Histórias de Nelson que ouvi atrás da porta n° 2 : FALECIDA


Passou um batom cor-de-boca e desapareceu escada abaixo sem derramar uma mísera lágrima durante todo o trajeto até a sua casa. Epiláfio, em contra-partida deslizou na parede e se encolheu feito um feto no chão da sala: imóvel. Apenas lhe compunha à imagem de pobre diabo as contrações repentinas de dor e amargura que lhe palpitavam como soluços involuntários. Pensou que fosse morrer.
No outro dia a imagem da sala era aterradora. Epiláfio dormira na mesma posição em que caíra. Ao redor dele um cinzeiro repleto, livros e discos espalhados, em meio as roupas sujas de Alaliáscara com as quais dormira abraçado. Acordou assim que o sol se fez presente na janela descortinada do apartamento ordinário da Francisco Sá. Sua boca, uma amargura tão profunda que fora como se todo o fel que encobrira seu coração tivesse sido vomitado na madrugada. Acordou outro.
Na repartição quando lhe perguntavam em que pé andava a situação ele era categórico: Está morta! Utilizara essa frase tão exaustivamente que invariavelmente recebera um “Meus pêsames” como resposta. Nesse contexto sempre agradecia e seguia sua vida adiante. O destino que Epiláfio houvera dado à Alaliáscara fora tão convincente que até mantinha certa nostalgia ao desenterrar suas memórias: - Uma santa mulher! - Suspirava de si para si, como se a tal fulana estivesse, de fato, morta. Era tão fiel à memória da falecida que no dia de finados comprou flores amarelas e levou até o cemitério do Bonfim, decidiu não entrar, sob a desculpa do calor, deixara o ramalhete à porta, fizera o sinal da cruz e voltara para casa.
No dia seguinte foi até o quarto de sua mãe e disparou: - A partir de hoje só me visto de preto compreendeu? - A mãe, pobre coitada, numa velhice contundente, examinou as caixas de remédio para confirmar se tivera esquecido algum. Ao se deparar com sua saúde mental intacta pensou: - Espeto!
Epiláfio passou meses numa viuvez honesta. Na repartição nem se tocava mais no assunto, a fulana era mesmo dada como morta e enterrada, alguns amigos até tentavam animá-lo: – Vambora pro clube Epiláfio. Ainda és muito jovem rapaz, bola pra frente! – Mas ele era irremediável: - Vão vocês, minha vitalidade morreu junto com Alaliáscara. Podem ir – determinava o viúvo. – Pelo menos nos leve até lá então? – pediu Nogueira, na expectativa de que chegando lá o colocassem fora do carro e o ajudassem a esquecer a falecida. – Fechado, uma carona eu dou, mas não descerei do carro ouviram? – E os rapazes piscaram uns para os outros enquanto acenavam positivamente com a cabeça.
Na altura da Afonso Pena o semáforo fechara, a noite fazia calor e os rapazes baixaram os vidros do automóvel enquanto ele ia parando na faixa. De dentro do carro, naquela esquina se pode ver. Era ela, a falecida, mais viva do que nunca, aos beijos com um cavalheiro de porte franzino, bem menor que Epiláfio, mas estavam num furor que pareciam que se alimentavam um do outro pela boca. E ela ria alto enquanto o franzino mancebo lhe beijava as nucas e as maçãs do rosto. Uma pouca vergonha digna de platéia.
No carro foi uma comoção geral, os três colegas de Epiláfio num misto de confusão e indignação começaram a questioná-lo e a mau dizê-la como que tentando compreender aquela cena. Epiláfio foi tragado por um pavor tremendo, os olhos encheram-se de lágrimas e de súbito sem responder às indagações dos rapazes ele pôs o pé tão fundo naquele acelerador em direção ao casal que era como se o carro tivesse sido tomado por um tufão. Ouviu-se um grande grito na avenida seguido de um estrondo indescritível. Epiláfio deu cabo da vida de Alaliáscara.
No hospital, quando o delegado do distrito interpelou Epiláfio, semi-consciente na maca, sobre o que ocorrera, o pobre-diabo só disse uma frase: - Ela já era falecida, Doutor!